sexta-feira, 14 de setembro de 2012

DEPOIS DE DOIS ANOS: A MORTE ANUNCIADA


                         MARCO  AURÉLIO

Risonho, franzino, bonito, vestindo cardigã azul claro, limpo e educado conversando na escadaria do Centro de Referência e Treinamento DST/AIDS de São Paulo, quando o serviço ainda era na Rua Antônio Carlos.
Casado com uma travesti, negra, linda, tipo mignon, cozinheira de uma casa de apoio para travestis, onde moravam juntos.
Marquinho, como eu o chamava, oriundo de São Carlos, nunca me disse que a amava, mas falava de sua companheira com brilho nos olhos e um sorriso fácil no rosto.
Ficou viúvo e, conseqüentemente, foi expulso de sua moradia, pois não era travesti.
No CRT/AIDS se reunia com um grupo socialmente excluído, eram toscos, com perfil típico de machos “aproveitadores brasileiros”. Num determinado momento, levou a responsabilidade por furtos realizados pelo grupo e, na verdade, seu crime foi não ser cagueta e encobrir os amigos. Assim, foi acusado sem provas e sem julgamento.
Na mudança do CRT?AIDS para a Rua Santa Cruz, muitos dos pacientes, os mais carentes, deixarem de poder se alimentar no ambulatório.
Marquinho, então, ficou sem a possibilidade de utilizar-se da Casa Abrigo para Travestis e também ficou sem a garantia das refeições. A partir daí, Marco era visto, cada vez mais, pedindo dinheiro na rua.
É claro que todo o ocorrido colaborou para o uso, cada vez maior, de álcool, cocaína e crack.  Qual ser humano suportaria tudo isso sem anestésicos?????
O Estado não deu conta de Marco, as casas de apoio também não: umas por preconizarem a abstinência, onde da noite para o dia não se pode usar drogas; outras por proibirem os internos de manterem relações afetivo-sexuais entre si; e, ainda, aquelas que impedem o direito do interno de ir e vir de sair da casa durante o dia.
Marco, com tudo isso, tinha seu modo de militar pela política de saúde e de DST/AIDS
Apesar de sua mendicância, exclusão e uso de drogas, gritou contra a falta de medicamentos, chegou num determinado momento a deitar no meio da rua, parar o trânsito, e foi preso por isso.
O serviço de DST/AIDS chamava a polícia recorrentemente quando Marco ameaçava os médicos ou pela falta de atendimento, ou pela falta do tipo de atendimento de que acreditava precisar.
Levou um saco de fezes, que ele mesmo fez, de presente para o Coordenador de DST/AIDS da época e pediu para um funcionário entregar! O funcionário jogou no lixo e Marco dizia: “é isso que ele merece, leva para ele!!!”.
Marco ficou proibido de entrar no serviço e foi transferido para outro Centro de Referência para tratamento. Mas seu ponto de referência era ali no CRT AIDS, onde iniciou o tratamento e onde perdeu sua “neguinha”, como carinhosamente falava.
Assim, gritava, esperneava e chegava a irritar, quando via alguma incoerência entre o discurso de um Estado cuidador e um Estado que abandona, principalmente aqueles que não usam os espaços democráticos estabelecidos, como Marco acreditava.
 Marco incomodou tanto que foi literalmente excluído de seus lugares de tratamento e cuidados. Várias vezes aviei suas receitas médicas de alguns médicos que lhe atenderam na esquina, pois não lhe era nem mais permitido o acesso à farmácia em busca de seus medicamentos fornecidos gratuitamente pelo poder público.
Marco Aurélio foi um dos maiores militantes pela causa dele e de outros pacientes que pude conhecer e de um jeito muito peculiar.
Era, contudo e de seu jeito, aderente ao tratamento de HIV e hepatite. Sempre carregando um saco de lixo preto, repleto de seus medicamentos, que não esquecia de tomar.
Morreu em maio de 2012 como mendigo, na esquina do ambulatório no qual era proibido de entrar.
Marco morreu e deixou de incomodar muitas pessoas, principalmente funcionários, os quais comentavam que Marco tinha alguma coisa estranha, pois estava “demorando para morrer”.
Mas, quem matou Marco nos seus 47 anos? O HIV, a hepatite, a fome, o frio, o abandono?
Nós e o Estado, que não conseguimos acolher Marquinhos em sua especificidade?
Morreu Marco Aurélio na esquina da Rua Santa Cruz. Iria ser enterrado como indigente, mas, como todos sabiam que era paciente do serviço, buscaram o mesmo e uma funcionária indignou-se e resolveu procurar a família para dar a Marco um velório mais digno.
Tchau Marquinho, fique bem, pois espero que, em outra dimensão, encontre o acolhimento que nós seres humanos que te conhecemos e, sobretudo o Estado, com sua política de enquadramento, nunca lhe demos.
Um grande beijo.
Marcelo Peixoto

Um comentário:

Fernanda Freitas disse...

a vida pode ser bem dolorida. temos constantemente vozes lucidas no meio da loucura, que não damos credito... deveriamos ser mais abertos, amar mais. mas é dificil. Um beijo querido